Ventre Livre, o melhor remédio para as crianças?
Em 1923, jornais brasileiros publicavam informações sobre os benefícios que um remédio de nome Ventre Livre trazia a todos, não importava idade, sexo, religião, se a mulher estava grávida ou não, se quem o tomasse ia dirigir ou não… Era realmente uma medicação sem preconceitos, sem discriminação… Nada se falava sobre seus possíveis efeitos colaterais. Lia-se: “Às vezes, sem saber por que, nós nos sentimos de repente muito incomodados e indispostos, com moleza e grande abatimento geral, com mal-estar em todo o corpo e preguiça para fazer qualquer esforço, até dores e peso no estômago, na cabeça e no ventre, enfim sem vontade nem coragem nenhuma de trabalhar!”.
O texto continuava: “Isto acontece muitas vezes na vida sem que a gente espere nem saiba por quê. Sempre que estas perturbações aparecerem, assim de repente, a pessoa deve ter logo certeza de que o seu estômago e intestino estão muito sujos e cheios de materiais podres. Neste mesmo dia, comece a usar Ventre Livre meia hora antes do almoço e do jantar, para evitar que apareça qualquer complicação perigosa e moléstia interna”.
E, mais adiante: “Ventre Livre é o único remédio que cura indigestão, a vontade exagerada de beber água, estômago sujo, ânsias, agonias, vômitos, arrotos, empachamentos, dores, cólicas e peso do estômago, calor e ardência do estômago, gosto amargo na boca, o fastio e a falta de apetite, as cólicas e dores de barriga, a inflamação do baço e dos intestinos, as doenças do fígado, as dores, cólicas e peso do fígado, hemorroidas e prisão de ventre!”.
Era, enfim, um santo remédio… A propaganda terminava afirmando que “Ventre Livre é também o melhor remédio para as crianças!”.
O anúncio me transportou a algumas décadas antes de sua publicação, mais precisamente a setembro de 1871.
Todos sabemos que, na história deste país, a data de 13 de maio ocupa um lugar especial. Registra um fato importante para a nossa economia e para a sociedade dos tempos do Império. Nesse dia, em 1888, era promulgada a Lei Áurea, pondo fim à escravidão no Brasil. Os navios negreiros continuaram trazendo cativos, a escravidão prosseguiu e surgiram novas formas de exploração. Mas, no papel, aquele mal havia sido extirpado.
Como em muitos outros países, cujas economias dependiam do sistema escravista, o processo para se chegar à Lei Áurea foi gradual, sempre como resposta a movimentos cada vez mais fortes em defesa da mão de obra livre. As pressões internacionais para a abolição dos escravos surgem no início do século 19 e, no Brasil, ações nesse sentido aparecem décadas depois. Antes da Lei Áurea, vieram a Lei Eusébio de Queiróz (1850) e a Lei dos Sexagenários (1885), passando pela Lei aprovada em setembro de 1871, a Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre.
Em resumo, a Lei do Ventre Livre declarava livres os filhos de mulher escrava que nascessem a partir de 28 de setembro daquele ano. Essas crianças, também chamadas de ingênuos, ficavam em poder dos senhores de suas mães até a idade de 8 anos. A partir daí, o senhor podia entregá-las ao governo em troca de uma indenização ou usar sua força de trabalho até que completassem 21 anos. A prestação dos serviços só seria suspensa caso fosse provado que esses menores sofriam excessivos maus-tratos por parte de seus senhores.
O Império também tinha o direito de ficar com os menores e usá-los em estabelecimentos públicos, seguindo o ditado pela então Diretoria de Agricultura, órgão responsável pela aplicação da lei a partir da reforma ministerial acontecida em 1873.
Será que, no entendimento dos legisladores da época, a Lei do Ventre Livre também era um santo remédio para as crianças e seus pais escravos?