Um desejo que não podia ser revelado em O Crime do Padre Amaro

Um dos textos que integram o livro A Palavra Silenciada trata de um certo desejo interdito presente em O Crime de Padre Amaro, de Eça de Queirós. Seu autor, Osmar Ferreira Oliva, mestre em Letras, professor de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Montes Claros, MG, analisa trechos da obra em que Amaro, o protagonista do romance, apresenta uma tendência homoerótica, que Eça de Queirós revela aqui e ali, mas com reticências… Eis o que escreve Oliva:

Em O Crime do Padre Amaro, Eça de Queirós descreve a beleza e a virilidade do pároco recém-chegado a Leiria, aproximando-o da imagem de Apolo, como nos diz o senhor Chantre: ”Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que – acrescentou sorrindo com satisfação – depois de Frei Hércules vamos talvez ter Frei Apolo”. (O Crime do Padre Amaro, p. 240)”.

O povo de Leiria é unânime em perceber no pároco novo “uma boa figura de homem”. A. S. Joaneira, que o acolhe como hóspede em sua casa, reforça ainda mais essa imagem apolínea. Mediando o pensamento dela, o narrador nos descreve que Amaro “parecia bem-feito; tinha um cabelo muito preto, levemente anelado. O rosto era oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas” (O Crime do Padre Amaro, p.249). O cônego Dias, seu padre-mestre, que não o via desde o seminário, achava-o “mais forte, mais viril”. No entanto, o narrador desloca o foco narrativo para a infância de Amaro, órfão de pai e mãe, ficando sob a guarda e os cuidados da Marquesa de Alegros. Eça de Queirós nos informa que Amaro

Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma velha. As criadas, de resto, femininizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as saias, em contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. (O Crime do Padre Amaro, p. 251).

Essas descrições de Amaro, às vezes, vão deixando algumas lacunas que o leitor tem dificuldades em preencher, porque o narrador deixa escapar algumas pistas sobre a dúvida da masculinidade de Amaro, mas, sutilmente, procura despistar o leitor e apagar essas marcas, temendo revelar um certo homoerotismo do protagonista. Quando indica que as criadas femininizavam-no e vestiam-no com roupas de mulher, o narrador interrompe o relato, provocando certa ambiguidade quanto às maneiras efeminadas de Amaro.

Quando entra para o seminário, aos treze anos, a primeira coisa que o narrador nos diz é que Amaro agradou aos padres, que mudaram seus hábitos carrancudos quanto aos recém-ingressados e mais jovens, deixando-o participar dos passeios e das conversas com os mais velhos, tratando-o por “tu”, porque o seu rosto bonito logo agradara. No entanto, o narrador descreve uma cena em que Amaro “alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma brasa silenciosa, o desejo da Mulher”. (O Crime do Padre Amaro, p. 255).

Algo que nos chama a atenção nessa cena e que se repete em outras cenas semelhantes é a erotização do sagrado:

Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com o olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a salve-rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; inspirava, despindo-se, olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca… (O Crime do Padre Amaro, p. 255).

O celibato impedia-o de amar e sua volúpia voltava-se então para o sagrado, desejando o que é santo e casto: a fantasia erótica da imagem da Virgem.

Outra passagem digna de nota, em que percebemos não só a erotização do sagrado mas também um olhar homoerotizado sobre o corpo masculino, é quando Amaro se instala na casa da S. Joaneira; à noite, passa a ler os Cânticos dos Cânticos, nos quais a figura de Cristo se reveste de erotismo, acendendo em Amaro a chama do desejo, que ele transfere para Amélia, que se encontra num quarto acima do seu. Nesses cânticos

Jesus é invocado, reclamando com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: “Oh! Vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! Queima-me! Vem! Esmaga-me! Possuí-me!” (O Crime do Padre Amaro, p. 293).

É esse mesmo livro que Amaro encomenda a leitura a Amélia, o qual faz acentuar em ambos o desejo da carne, proibido, já que ele é padre e ela ainda noiva de João Eduardo.

O olhar de Amaro resvala também para o corpo masculino. Quando vai a Lisboa pedir auxílio político ao Conde de Ribamar para conseguir a sua transferência de uma paróquia na serra para Leiria, Amaro encontra ali uma das filhas da Marquesa de Alegros, que o educara e o mandara para o seminário, juntamente com sua amiga Tereza e um jovem inglês. O narrador relata que esse jovem, ao se aproximar da condessa Joana, para a cumprimentar, provocou uma certa impressão em Amaro que “admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou-lhe que lhe caíra uma luva, e apanhou-lha servilmente”. (O Crime do Padre Amaro, p.263).

O homoerotismo não chega a ser um tema desenvolvido por Eça de Queirós. O romancista passa por esse assunto como se temesse acentuá-lo em suas narrativas ou como se tivesse consciência de que era um desejo que não podia ser nomeado, pela sua “impureza” ou por ser uma “infração” às normas convencionais do relacionamento amoroso. Mas, se o homoerotismo lhe é um tema tão caro, que deve ser interdito, por que Eça continua a dizê-lo com reticências, por meias-palavras no silêncio do não-dito?

Em Essas Interdições de Eros, texto de autoria do mestre Osmar Pereira Oliva. Extraído do livro A PALAVRA SILENCIADA. Estudos de Literatura Portuguesa e Africana. Ed. Vício de Leitura/Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana.

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