Mulher é resgatada depois de trabalhar como escrava por 40 anos na Bahia
Uma mulher de 52 anos foi resgatada esta semana em Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia, depois de permanecer por quatro décadas submetida a condições análogas à de escravo. Um acordo com a empregadora firmado na sexta-feira (1º/04) vai garantir o pagamento de R$ 150 mil em verbas rescisórias e indenização por danos morais. A vítima, Maria* (nome fictício para protegê-la), foi retirada do local em que era explorada e encaminhada para a residência de seus familiares. A foto desta matéria é ilustrativa e também não a identifica.
A operação de fiscalização da Comissão Estadual de Combate ao Trabalho Escravo da Bahia (Coetrae-BA) teve participação da Defensoria Pública da União (DPU), do Ministério Público do Trabalho (MPT), de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Previdência, da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
“Eu já participei de diversas operações de resgate de trabalho doméstico e muitas vezes a mesma justificativa de que pegou para criar, de que é filha de criação, mas este caso foi estarrecedor. Quando a gente vai ver, os filhos [estão] formados enquanto ela nem terminou a quarta série. E o pior: neste atual estágio da pandemia, [Maria*] não tinha tomado nenhuma dose da vacina. Que mãe deixa um filho sem vacina?”, questionou o defensor público federal Ricardo Fonseca.
A procuradora Manuella Gedeon, coordenadora de Combate ao Trabalho Escravo do MPT na Bahia, informa que, após o resgate, propôs um acordo para a empregadora de forma a evitar uma ação judicial, que seria prejudicial para ambas as partes, principalmente para a vítima.
“Esse é um daqueles casos clássicos de empregada doméstica levada ainda criança para a casa do empregador e que nunca recebia salário sob o argumento de que seria da família. Essa é uma realidade que infelizmente vemos se repetir, mas que os órgãos de fiscalização estão buscando combater”, afirma a procuradora.
A operação contou ainda com a participação dos auditores fiscais do trabalho José Wanderley Nery e Flávia de Almeida Maia e do servidor da SJDHDS Admar Júnior, além de uma equipe da PRF.
Acordo
Pelo termo de ajustamento de conduta (TAC) assinado nesta sexta-feira (1º/04), a patroa, que não teve o nome revelado para evitar a identificação da vítima, compromete-se a pagar as verbas rescisórias e a indenização por dano moral, que, juntas, chegam a um valor total de R$ 150 mil, em 50 parcelas mensais.
O TAC também dá conta de outra ilegalidade identificada pela equipe de fiscalização: a apropriação indébita, pela patroa, de um benefício de prestação continuada (BPC) obtido pela vítima depois de ser diagnosticada com um tumor cerebral há alguns anos.
Após a concessão do BPC pela Previdência Social, a empregadora convenceu a vítima a aplicar o dinheiro na compra parcelada de um terreno em Vitória da Conquista, mas o imóvel não estaria registrado em nome dela, mas sim da empregadora.
No acordo, a patroa também se compromete a transferir a propriedade do imóvel para Maria*. Com o acordo assinado, a vítima poderá viver na cidade em que mora a sua família, contando com a renda mensal das prestações da rescisão de contrato.
Com a formalização do acordo e o reconhecimento do vínculo empregatício, a vítima deverá perder o direito a receber o BPC. Por isso, a DPU deverá representá-la para a obtenção de aposentadoria por invalidez permanente em razão do tumor cerebral.
Já o suporte à vítima está sendo coordenado pela Secretaria da Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado, que conduziu ela até a residência de seu pai e monitora sua situação social.
Entenda o caso
A ação fiscal foi motivada por uma denúncia que chegou à unidade do MPT em Vitória da Conquista no ano passado, encaminhada pela Polícia Federal. Antes de ir até a pensão para estudantes onde Maria* trabalhava, foi necessário fazer uma série de investigações preliminares.
Ao chegar ao local, o teor das denúncias foi confirmado. A vítima contou à força-tarefa que começou a trabalhar para a empregadora quando tinha apenas 12 anos. Na época, ela morava numa fazenda em Ubaitaba, no sul baiano, e o pai concordou em deixar a filha seguir com a empregadora para Itabuna, onde ela residia naquela época.
Nos primeiros anos, Maria* ainda tinha contato com o pai, que a visitou algumas vezes, mas com a mudança da patroa para Vitória da Conquista, eles perderam o contato. Somente em 2019, mais de 30 anos depois, ela reencontrou sua família.
Nos últimos anos, Maria* sentia que vivia em situação análoga à de escravos. Ela relatou à força-tarefa que viu em um programa de televisão a notícia do resgate de uma empregada doméstica como ela, que permaneceu por décadas na casa da patroa e que também teve benefícios previdenciários usurpados pelo empregador. A partir de então, passou a alimentar a esperança de ser resgatada.
- Nome fictício para proteger a identidade da vítima.
Imagem em destaque: Foto meramente ilustrativa. Crédito: Annie Spratt/Unsplash