Medicação imprópria para idoso vai criar sério problema para sistema de saúde do Brasil no futuro
Uma senhora de 65 anos deixa o pronto-socorro levando para casa uma receita. Agora, ela vai até a farmácia mais próxima para adquirir ciprofloxacino, um remédio que vem tomando de modo contínuo. Nesse mesmo momento, um médico, do mesmo hospital, lastima que seu paciente de 78 anos ainda esteja internado. Ele já poderia ter recebido alta, não fossem as complicações provocadas pela continuada ingestão de ciprofloxacino… Além de afetar negativamente a qualidade de vida daquele homem, os custos para cuidar de sua saúde foram muito maiores, ele já poderia estar em casa e o leito hospitalar estaria disponível para outro paciente necessitado de internação.
Esse exemplo foi criado apenas para dar início a este texto, mas ilustra bem um problema que vem preocupando (ou deveria preocupar) cada vez mais os profissionais de saúde no Brasil: como reduzir a prescrição de medicamentos potencialmente inapropriados (conhecidos, em inglês, pela sigla PIM), em especial para pessoas com 60 ou mais anos de idade? Afinal de contas, homens e mulheres em idade avançada são mais suscetíveis às reações adversas desses medicamentos, enfrentam outras doenças, são o lado mais fraco da corda. Em outras palavras: o médico deve receitar ou não um PIM para seu paciente idoso (a lista é longa, o ciprofloxacino é apenas um deles)? Quantas vezes ao dia, por quanto tempo? Esse é um problema de decisão médica. Aliás, um baita problema.
A ponta de um iceberg
Estudo recentemente publicado na revista Journal of the American Medical Directors Association (Jamda) e realizado por especialistas brasileiros liderados por Pedro Curiati, médico geriatra do Núcleo de Medicina Avançada do Hospital Sírio-Libanês, dá uma pequena ideia do tamanho desse problema. Pode-se dizer que ele revela apenas a ponta do iceberg. O estudo baseou-se em dados coletados pelo período de um ano (de agosto de 2022 a julho de 2023), envolvendo 14560 internações de 10038 pacientes, na unidade hospitalar da capital paulista. Para chegar aos resultados, os pesquisadores fizeram uso de uma ferramenta que é integrada ao prontuário eletrônico dos pacientes e utiliza inteligência artificial para gerar alertas sobre a segurança e o uso correto de medicamentos. Toda vez que o médico do pronto-socorro estivesse indicando ao idoso o uso de um medicamento potencialmente inapropriado, a ferramenta emitia um alerta, sinalizando que aquela podia não ser a melhor decisão. A escolha continuava sendo dele. As consequências surgiriam nas internações e nas estatísticas.
“Os idosos têm necessidades específicas que exigem um olhar diferenciado”, afirma Curiati. “Pacientes cujas prescrições acionaram esses alertas tendem a ter internações mais prolongadas, incluindo complicações, além de mais eventos adversos, como quedas, confusão mental e até morte”, destaca.
A pesquisa revelou que, em comparação, os pacientes internados e medicados com histórico de PIM apresentavam mais doenças além da que os levou à internação (cerca de 28% mais), quase duas vezes mais chances de irem para a emergência (57,2% contra 29,2%) e menor condição de enfrentarem uma cirurgia (37% contra 58,4%) devido aos riscos provocados pela ingestão continuada de PIM. O estudo também revelou maiores efeitos adversos (18% contra 10,2%), um período de internação mais longo (de 7 a 12 dias contra 4 a 9 dias), mais idas não planejadas à UTI (7,9% contra 3,4%) e um maior número de mortes (3,4% contra 0,9%).
O iceberg
Esse é o quadro preocupante de um único hospital. Muito provavelmente, diante desses números, ações de gestão e de segurança médicas internas podem minimizar o problema numa unidade de saúde, embora não seja fácil. Mas como resolver a questão em nível de Brasil? O Sistema Único de Saúde é composto por mais de 38 mil Unidades Básicas de Saúde e cerca de 6 mil e 500 hospitais espalhados pelo país. Como fazer com que um médico de uma UBS no interior do Acre, por exemplo, evite prescrever medicamentos PIM, colaborando para que os leitos hospitalares não fiquem ocupados por mais tempo por idosos com doenças, efeitos adversos e complicações desnecessárias, fruto do tratamento médico que receberam?
A questão assume dimensão assustadora quando se sabe que a população brasileira está envelhecendo muito rapidamente. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje vivem no país mais de 32 milhões de pessoas com 60 ou mais anos de idade, mas em 2050 a previsão é de que sejam quase 70 milhões.
Médicos despreparados
Para Curiati, parte da solução está na qualificação dos profissionais de saúde. “Acredito que [a situação revelada pelo estudo] se deve, em grande parte, ao desconhecimento de profissionais que não são especializados no cuidado ao idoso, independentemente do ambiente ou do nível de cuidado. É importante disseminar informações sobre prescrição segura para todos os profissionais que atendem idosos, independentemente da especialidade”, salienta. “Infelizmente – continua -, muitos recém-formados em medicina não saem suficientemente preparados para lidar com esses cuidados específicos. Existem alguns medicamentos conhecidos por apresentarem riscos para idosos, como anti-inflamatórios e o antibiótico ciprofloxacino, mas um conhecimento mais aprofundado sobre o tema ainda é necessário. Acredito que temas de geriatria estão cada vez mais presentes nos currículos e a Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, passou por uma reformulação significativa nessa área há alguns anos, o que é um passo importante para capacitar melhor os novos médicos”.
Prescrição sem controle
O especialista aponta outra solução complementar. “Percebo que faltam sistemas organizados para garantir uma prescrição segura. O sistema que usamos em nosso estudo, por exemplo, emite alertas em tempo real durante a prescrição, ajudando os médicos a reconhecerem riscos potenciais, especialmente para idosos”. Segundo ele, a adoção de sistemas como o do estudo favorece um controle mais adequado no momento da prescrição, especialmente quando o medicamento é facilmente obtido nas farmácias.
“Por exemplo, remédios como omeprazol, que aliviam sintomas gástricos, podem ser menos preocupantes do que anti-inflamatórios, que muitas vezes são vendidos como antigripais ou sintomáticos e ficam expostos nas prateleiras sem sinalização adequada sobre seus riscos. É essencial conscientizar os farmacêuticos e garantir que idosos tenham um médico de referência que possa orientá-los sobre o uso correto de medicamentos”, finaliza o geriatra.
Escritor e jornalista formado pela Universidade de São Paulo, com passagem pelo Diário Comércio e Indústria, pela Revista dos Tribunais, pela Editora Abril e diversos outros órgãos de imprensa, com especialização em extensão rural e jornalismo científico.