Imprensa anarquista de São Paulo tinha operários portugueses, italianos e espanhóis à frente
O início da industrialização no Brasil marcou, também, o surgimento de uma classe operária, cuja vida era assolada por todo tipo de adversidade nas fábricas. Buscando denunciar a situação, alguns trabalhadores e militantes anarquistas se organizaram, tendo como elo a produção de jornais, tema da tese A imprensa operária anarquista: projetos, concepções gráficas, recursos e circulação na cidade de São Paulo (1901-1935), de autoria de Lucas Thiago Rodarte Alvarenga. A pesquisa analisa alguns dos principais periódicos anarquistas em circulação na cidade de São Paulo no período destacado, sob o ponto de vista da concepção dos seus projetos gráficos, além do conteúdo das publicações. Também avalia a atuação de alguns de seus idealizadores, todos operários-jornalistas e importantes militantes libertários da época.
Defendido na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Assis, sob orientação da professora Tania Regina de Luca, o estudo mostra que a imprensa operária pode ser considerada fonte para a compreensão da vida dos trabalhadores brasileiros empenhados na busca por melhorias da condição de vida de toda uma classe. “Na São Paulo do início do século XX predominavam nas fábricas o ambiente insalubre, os baixos salários e as jornadas extenuantes, motivo de insatisfação e mobilização para reivindicar mudanças das autoridades e do patronato,” assegura Alvarenga. Para o autor, essa imprensa deve ser encarada enquanto espaço social e cultural no qual se forjaram sociabilidades e que expressa as vozes dos trabalhadores, devendo ser analisada enquanto identidade da classe em formação.
Para a realização da pesquisa, o autor verificou os periódicos O Amigo do Povo (SP, 1901-1904), Germinal (SP, 1902), La Battaglia (SP, 1904-1912), A Terra Livre (SP/RJ, 1905-1910), Germinal-La Barricata (SP, 1913), Guerra Sociale (SP, 1915-1917) e A Plebe (SP, 1917-1935), além do jornal anticlerical A Lanterna (SP, 1901-1904, 1009-1915, 1932-1935), boa parte delas custodiadas no Centro de Documentação e Memória (CEDEM), da Unesp, que serviram como fontes primárias para o estudo.
Segundo Alvarenga, os jornais buscavam imprimir nos trabalhadores a base política do anarquismo e a convicção de que poderiam alterar a situação e as condições em que se encontravam, desde que abraçassem a luta revolucionária. Os periódicos estavam abertos a todos que se interessassem em discutir as temáticas caras aos libertários, ou que se dispusessem a ajudar na confecção, distribuição e no aporte financeiro dos jornais.
Para fomentar a produção das edições era preciso que houvesse um conjunto de indivíduos envolvidos para idealizar e, em seguida, viabilizar economicamente as folhas e garantir a circulação. “Esses trabalhadores estavam na vanguarda da produção jornalística operária: eram alfabetizados, alguns com formação universitária, tais como médicos e advogados, que desempenhavam sua profissão, além de colaborar na redação dessa imprensa; outros, imigrantes, trabalhadores manuais, com pouca instrução escolar, mas com larga experiência adquirida a partir do trabalho na imprensa operária em seus países de origem e empregados das tipografias de jornais, portanto, com experiência cotidiana na produção de impressos,” diz. Muitos operários militantes da imprensa anarquista paulista eram de origem portuguesa, italiana e espanhola. O estudo revela que, entre os periódicos estudados, apenas A Terra Livre e A Plebe eram escritos totalmente em português, os demais eram redigidos em italiano, espanhol ou bilíngue.
No caso da produção dos periódicos, a prática do auxílio mútuo e do financiamento coletivo tornou-se um recurso importante como forma de sobrevivência dos grupos anarquistas e suas publicações. Havia uma permeabilidade e uma mobilidade entre seus membros, prática recorrente e até incentivada entre a militância. Eram os casos de O Amigo do Povo e Germinal, produzidos por grupos heterogêneos formados por imigrantes italianos, portugueses, espanhóis, além de alguns militantes brasileiros que se revezavam para angariar recursos e administrar os dois periódicos.
Também é preciso destacar a atuação dos anarquistas na produção dessas folhas. O jornal A Lanterna, fundado em 1901, foi uma iniciativa da Liga Anticlerical da cidade de São Paulo, tendo como redator-chefe o advogado Benjamin Mota, um ex-republicano que se converteu ao anarquismo. O Amigo do Povo, por seu turno, foi idealizado a partir da ação do advogado português e importante militante anarquista Neno Vasco. Ainda redator de A Lanterna, Benjamim Mota passou a colaborar com a produção de O Amigo do Povo, demonstrando como esses militantes estavam em intensa movimentação. Em 1905, Neno Vasco, em parceria com o então jovem militante Edgard Leuenroth, publicou A Terra Livre.
Considerado um dos grandes ativistas da imprensa libertária, com uma extensa produção e influência entre a classe operária brasileira, Leuenroth trabalhou em importantes jornais diários em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo tipógrafo, arquivista e memorialista da classe. Sua atuação perdeu fôlego à medida que o movimento anarquista foi sendo substituído na organização dos trabalhadores, sobretudo após a criação do Partido Comunista Brasileiro, em 1922. “A experiência jornalística de Leuenroth foi se constituindo a partir de sua formação profissional, atuando como aprendiz de tipógrafo e depois como compositor nas oficinas do jornal O Commercio de São Paulo,” explica Alvarenga.
A Lanterna, entre 1909 e 1915, foi o primeiro grande jornal totalmente redigido e gerenciado por Leuenroth. Mas foi em A Plebe, lançado em abril de 1917, sua maior empreitada na imprensa. O jornal foi um destacado periódico operário na primeira metade do século XX. Porém, Leuenroth não participou sozinho da organização da folha, tendo como parte do grupo de propaganda libertários já conhecidos do meio da imprensa paulistana, como Florentino de Carvalho, Rodolfo Felipe, Astrojildo Pereira, Everardo Dias e José Oiticica.
A imprensa anarquista foi um elemento importante da cultura dos trabalhadores, pois atuou como elemento capaz de chamar a atenção para as duras condições a que estava submetida uma parte considerável da população. Os jornais eram as vozes de pessoas que permaneciam silenciadas. Tal cultura, segundo Alvarenga, pautava-se na luta política, o que pressupunha ocupar o espaço público. “Os anarquistas somaram vitórias, a exemplo das jornadas grevistas de 1908, que resultaram na conquista da redução da jornada de trabalho, ou as manifestações por ganhos salariais na greve geral de 1917. “Mas também contabilizaram perdas, algumas fruto da própria visibilidade das ações anarquistas, que deu margem à perseguições e conflitos com patrões e com as forças da ordem,” conclui.