Escritor moçambicano Mia Couto recebe da UNESP o título de Doutor Honoris Causa
O escritor moçambicano Mia Couto chegou ao Brasil neste domingo, 5, a convite da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. Couto será agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Unesp amanhã, dia 7, em cerimônia a ser realizada no Memorial da América Latina a partir das 15h. Mia Couto é o décimo nono selecionado para receber esta honraria, que visa destacar o protagonismo de personalidades e suas contribuições para a arte, a cultura e a sociedade mundial, assim como pela promoção dos direitos humanos.
Em entrevista, o escritor fala sobre o impacto da pandemia em suas atividades, sua relação com o Brasil e o futuro que pode existir para a literatura em uma sociedade cada vez mais mobilizada pelo audiovisual. “A literatura não deve ficar pelo lamento. Ela deve reivindicar o seu lugar dentro da vida”, diz.
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Como os eventos dos dois últimos anos, com pandemia, crise econômica e guerra na Europa, afetaram sua vida e a sua produção literária?
Mia Couto: Vivo no país em que eventos como a guerra são uma realidade quase permanente. Atravessei três guerras e, estou certo, que passaram quase desapercebidas. Aquilo que chamamos em Moçambique de “guerra civil” durou 16 anos, matou um milhão de pessoas e causou 6 milhões de refugiados. Esse drama passou desapercebido para o resto da comunidade internacional. Se tivesse ocorrido na Europa essa tragédia teria uma outra visibilidade. Infelizmente, não é notícia quando morrem os outros. A pandemia afetou-nos, sem dúvida, mas num grau muito pequeno. Desde o início morreram até aqui umas duas mil pessoas. Morrem muito mais de malárias, de desnutrição de doenças que, não atingindo os países que comandam a economia do mundo, são tidas como as doenças dos “outros”, dos “invisíveis”. Tudo isto que estou invocando é apenas para lhe dizer que comecei a escrever há mais de trinta anos com guerras, com doenças, com crises profundas. E sinto que não escrevi apesar disso. Mas talvez por causa disso. Para criar humanidade onde estava semeada a desumanização.
Este título de Doutor Honoris Causa que a Unesp irá lhe conferir é uma expressão da admiração que seu trabalho granjeou junto ao público brasileiro. De que forma você enxerga o nosso país? O que lhe desperta atração e o que causa estranhamento?
Mia Couto: Olho o Brasil com apreensão e com solidariedade para que a grande nação brasileira volte a adquirir o seu esplendor, um lugar de produção de laços solidários e de acolhimento dos outros. Foi esse Brasil alegre (apesar dos profundos males, preconceitos e contrastes que sempre ficaram por resolver) que recebia bem os outros e que abraçava os estranhos como se fossem família. Uma das grandes felicidades da minha vida foi ter conhecido esse imenso país onde me revejo em casa. Uma das minhas grandes decepções foi não ter entendido quanto havia um outro Brasil menos visível, mais obscuro. Que é esse que se revelou mais claramente desde que Bolsonaro foi eleito presidente.
Com a explosão do fenômeno das fake news em todo o globo, vemos uma disputa contínua de narrativas sobre as causas por trás dos fatos, e até sobre os próprios fatos. A linha que separa realidade e ficção ficou mais tênue? E isso afeta de alguma forma o trabalho do ficcionista profissional?
Mia Couto: O criador literário não pretende estar a dizer uma verdade. Ele é um mentiroso que anuncia que vai mentir antes mesmo da primeira palavra. A linha divisória entre realidade e ficção não pode ser comparável com a fronteira que separa a mentira da verdade. Essa produção industrial de fake news é hoje uma arma montada por aqueles que sabem que não importa transmitir ideias mas produzir o medo, o ódio e o confronto cego com aqueles que são erguidos como os culpados.
Neste século 21 temos experimentado um crescente dilúvio de informação audiovisual em nosso cotidiano, boa parte dela concebida com o propósito do entretenimento. Qual pode ser o espaço da literatura e a função da literatura no mundo de hoje?
Mia Couto: A literatura não pode ficar pelo lamento. Ela deve recusar o gueto, o lugar reservado às elites pensantes. A literatura deve reivindicar o seu lugar dentro da vida, próximo das pessoas que contam histórias. Pede-se aos escritores que saiam do seu pedestal e que construam e divulguem a sua escrita lá onde ela é menos acessível. E que transmitam aos mais novos que a criatividade poética não é um atributo de gente especialmente dotada. A poesia vive no quotidiano mais corriqueiro, vive na linguagem metafórica que sabe expressar esse mundo que é de toda a gente.
Ao mesmo tempo que o seu trabalho é bastante reconhecido no Brasil, você também já se referiu diversas vezes a seu interesse por poetas brasileiros e pela prosa poética e Guimarães Rosa. Haverá algo que a literatura lusófona pode trazer ao mundo de distintivo, que não pode ser expressado ou percebido por outras matrizes culturais?
Mia Couto: O que podemos fazer de especifico, o que podemos, nós os chamados lusófonos, dizer que os outros não dizem não resulta das qualidades especiais do nosso idioma. Resulta de termos histórias únicas, percursos que vivemos que criaram imaginários próprios dentro de cada um dos nossos países. O Brasil tem uma história fértil de encontros e desencontros de culturas, de conflitos e namoros entre povos de origens profundamente diversas. Esta diversidade é um poderoso motor para a criação literária. O mesmo se passa com Moçambique e outros países africanos de língua portuguesa. Todos eles são nações recentes, entidades que resultam do encontro histórico de nações bem diversas. Só em Moçambique há cerca de 30 línguas que estão vivas, bem vivas, e que são faladas em paridade com a língua oficial que é a língua portuguesa. Esta é uma riqueza que não é apenas linguística. Em cada um destes idiomas existe uma cosmogonia particular que não pode ser perdida, e que pode alimentar o imaginário de escritores que veem o mundo de forma diferente.
Com informações do Jornal da Unesp/Pablo Nogueira. Imagem em destaque: Mia Couto/Divulgação.
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