Começam as escavações que darão origem ao Memorial DOI-CODI em São Paulo
As escavações arqueológicas no antigo endereço do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) – órgão que era subordinado ao Exército e foi local de tortura e assassinatos de opositores da ditadura militar – já têm data para que sejam executadas: de 2 a 14 de agosto deste ano. Os trabalhos serão realizados por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eles avaliam que os prédios do antigo DOI-Codi/SP são um marco físico que documenta um período brutal da história brasileira, sob permanente disputa.
Com as escavações (a serem realizadas na rua Tutóia, 921, no Paraíso, bairro da capital paulista, onde hoje ainda funciona uma delegacia de polícia), os pesquisadores pretendem explorar os vestígios encontrados no local, objetos, estruturas arquitetônicas e registros documentais, a fim de buscar esclarecimentos sobre o passado e contribuir para a compreensão dos eventos ocorridos durante o período.
“Resultado de um trabalho coletivo desenvolvido no âmbito do Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi em 2018, o objetivo dessas escavações é utilizar as pesquisas arqueológica e histórica para compreender os vestígios materiais e a memória associada a esse importante local de violações de direitos”, disse, em nota, o grupo responsável pelo trabalho.
Espaço de memória
Acrescentou que busca estabelecer uma base sólida para a criação de um espaço de memória do estado de São Paulo, permitindo que diversos grupos da sociedade possam acessar informações e interpretações sobre o passado.
“A investigação rigorosa, o diálogo contínuo com a sociedade e a aliança entre ciência e direitos humanos é um dos caminhos para o conhecimento do nosso passado, visando o fortalecimento da democracia e da construção de políticas públicas efetivas para a consolidação da cidadania”, diz a nota.
Haverá ainda visitas guiadas às escavações, oficinas com estudantes e professores, além de mesas e debates com ex-presos, pesquisadores e defensores dos direitos humanos.
Breve relato feito por quem passou pelas celas do DOI-CODI
Em 12 de junho de 2021, o jornal Correio Braziliense publicava um texto do jornalista Moacyr Oliveira Filho, preso pelo DOI-CODI em 8 de maio de 1972. Como colaborador voluntário da Comissão Nacional da Verdade, em 2012/2013, ele participou de quatro diligências no endereço onde serão feitas as escavações, ajudando a reconstituir sua arquitetura original, descaracterizada por várias reformas. Reproduzimos a seguir parte do referido texto. Também reproduzimos imagem do local que ilustrou a matéria, para melhor compreensão do que Oliveira Filho relata.
A Operação Bandeirantes (OBAN) foi criada em 2 de julho de 1969. Instalou-se, inicialmente, no quartel do 2º Batalhão de Reconhecimento Mecanizado da Polícia do Exército, na Rua Abílio Soares, mas logo depois foi transferida para o complexo de prédios, entre as ruas Tutóia, 921, Thomaz Carvalhal, 1030, e Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso, pertencentes ao Governo do Estado de São Paulo, nos fundos da 36ª DP, que funciona até hoje na Rua Tutóia. Em setembro de 1970 passou a se chamar, oficialmente, Destacamento de Operações Internas — Comando de Operações Internas (DOI-CODI).
O DOI-CODI funcionou ali até 1984, quando foi transferido, inicialmente para o 4º Batalhão de Infantaria, conhecido como Quartel de Quitaúna, em Osasco, e depois para uma área no Hospital do Exército, no Cambuci, onde ficou até a sua desativação, por uma Portaria do Ministério do Exército, de 18 de janeiro de 1982, que criou em seu lugar, nas 2ª Seções das unidades militares, as Subseções de Operações (SOp), para realizar as operações de informações e contra-informações.
Quando dessa transferência, alguns dos seus principais torturadores deixaram o órgão, retornando para as Polícias Militar, Civil ou Federal. Um deles foi o delegado Laertes Aparecido Calandra, que usava o codinome de Capitão Ubirajara, que voltou para a Polícia Federal, levando consigo a maior parte dos arquivos do DOI-CODI. Os documentos mais sensíveis foram queimados. O que escapou está hoje no Arquivo Público do Estado de São Paulo, podendo ser consultado na pasta 50 – Z – 9 do Fundo Deops.
Em junho de 1991, o complexo arquitetônico da Rua Tutóia é oficialmente devolvido pelo Exército ao Governo do Estado de São Paulo. Em 2014 foi tombado pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado. Até hoje funcionam ali a 36ª Delegacia Policial e diversos outros órgãos da Secretaria de Segurança Pública.
A reivindicação dos movimentos de direitos humanos, Tortura Nunca Mais e familiares de mortos e desaparecidos é de que esse complexo arquitetônico, depois de tombado, seja transformado num Memorial, para preservar a memória desse lugar. Essa reivindicação consta, também, das recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade. Mas isso até agora não saiu do papel.
Antes do tombamento, várias reformas realizadas no prédio principal, onde funciona a Delegacia e ficavam, desde 1970, as salas de tortura e as celas do DOI-CODI, descaracterizaram completamente esses espaços. O outro prédio, onde as torturas eram realizadas em 1969, está inalterado, mas totalmente abandonado.
Em 2013, diligências da Comissão Nacional da Verdade, com a participação de ex-presos políticos que ali estiveram (eu participei de 4 visitas ao local), reconstituíram a arquitetura original do DOI-CODI. Esse trabalho está no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, com os respectivos croquis, nas páginas 755 a 757.
O DOI-CODI atuou intensamente na repressão política até 1976, quando ocorreu sua última grande operação — a Chacina da Lapa, como ficou conhecido o episódio em que membros do DOI-CODI invadiram a casa que ficava na Rua Pio XI, 767, no bairro da Lapa, São Paulo, que servia de sede para o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Na operação, Angelo Arroyo e Pedro Pomar foram assassinados pelos agentes do DOI-CODI e sete integrantes do PCdoB — João Batista Drummond, Elza Monnerat, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Wladimir Pomar, Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade – foram presos e levados ao prédio da Tutóia. João Batista Drummond foi assassinado nas dependências do DOI.
Considerado o mais violento e emblemático órgão de repressão da ditadura militar, segundo dados de uma monografia do tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, apresentada à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, em 1977 – O Destacamento de Operações de Informações (DOI) – Histórico Papel no Combate à Subversão – Situação Atual e Perspectivas, de 1969 a 1977, 2.541 pessoas foram presas pelo DOI-CODI, 914 foram encaminhadas para lá por outros órgãos, 3.442 prestaram declarações e foram liberadas e 54 foram mortas ou desaparecidas, depois de presas ali. Já o jornalista Marcelo Godoy, em seu livro A Casa da Vovó, lista 79 mortos por agentes do DOI ou depois de presos em suas operações, incluindo aí os que foram mortos em operações de rua ou em outros centros clandestinos, como o Sítio 31 de Março e a Casa de Itapevi, conhecida como Boate, utilizada a partir de 1974.
O DOI-CODI operava com três Seções — Interrogatório, responsável pela coleta de informações, interrogatórios e torturas; Busca e Apreensão, responsável pela prisão e estouro de aparelhos; e Investigação e Análise, responsável pela investigação, análise e cruzamento dos depoimentos e informações obtidas nos interrogatórios e aparelhos, que orientava os torturadores nos novos interrogatórios. Cada uma dessas Seções operava com 3 equipes — A, B e C, que trabalhavam em revezamento de 24 por 48 horas.
As equipes de interrogatório tinham um chefe, normalmente um delegado da Polícia Civil ou Federal, e cerca de 4 interrogadores/torturadores e um carcereiro — oficiais da PM, agentes da Polícia Federal ou Civil e militares de médio escalão. Todos os torturadores usavam codinomes, de forma invertida, para dificultar a sua identificação. Assim, os policiais civis ou federais usavam codinomes de patentes militares – Capitão Ubirajara, Tenente Ramiro, etc, e os militares usavam codinomes civis — Dr. José, Dr. Jorge, Dr. Tibiriçá, etc.
Seu primeiro comandante foi o então major Waldyr Coelho, de 1969 a setembro de 1970, quando foi substituído pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que usava o codinome de Doutor Tibiriçá, o maior símbolo da tortura no Brasil, que chefiou o órgão de 29 de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Outros comandantes foram o então major Audir Santos Maciel (1974/1976) e os tenentes-coronéis Paulo Rufino Alves (1976/1978), Carlos Alberto de Castro (1979), Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo (1980/1982) e Alfredo Lima do Carmo (1982/1985).
Nos primeiros meses de seu funcionamento, entre julho de 1969 e setembro de 1970, o esquema era precário. As torturas ocorriam no prédio de dois andares (à direita da foto, onde tem umas Kombis estacionadas) de forma meio improvisada. Mais de uma pessoa era torturada numa mesma sala, usando-se lençóis ou placas de madeirite para separar os ambientes, de modo que um preso podia ouvir a tortura e o interrogatório do outro.
Foi a partir de setembro de 1970, quando assumiu o comando o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que o DOI-CODI passou a funcionar de forma mais organizada, com as torturas e as celas funcionando nos fundos do prédio principal, onde funcionava a 36ª DP (à esquerda da foto, onde tem 3 carros estacionados), inclusive com revestimento acústico da sala principal de tortura, que ficava no térreo, ao lado da carceragem.
Portanto, os companheiros que foram presos entre 1969 e 1970 têm uma visão diferente da dos que foram presos depois de 1970.
Nessa época, a entrada das viaturas que nos conduziam, as temíveis C-14, era feita pelo portão de ferro da Rua Thomaz Carvalhal, 1030, nunca pela 36ª DP.
No térreo do prédio principal, onde funciona a Delegacia, ficava a carceragem, que tinha 7 celas, separadas por um muro. De um lado, a solitária (X0) e outras 3 celas (X1, X2 e X3). Do outro lado, mais 3 celas (X4, X5 e X6, que era a cela especial das mulheres). A carceragem era separada dos demais ambientes por uma porta de ferro. Ao lado direito dessa porta de ferro havia uma mesa onde ficavam os carcereiros. No teto do pátio, havia uma abertura, uma espécie de clarabóia.
Saindo da carceragem pela porta de ferro, à direita ficava a sala principal de tortura, com isolamento acústico e onde eram instalados o pau-de-arara e a cadeira do dragão. Uma escada levava para as salas de interrogatório do primeiro andar, onde ficavam, também, as salas do comandante e da equipe de análise.
Hoje, com as reformas, iniciadas no final do primeiro governo de Geraldo Alckmin e no de Cláudio Lembo, em 2006, depois que a carceragem da Delegacia foi desativada, as celas não existem mais. No seu lugar foram construídas salas, onde funciona parte do Departamento de Polícia Judiciária da Capital – DECAP. A solitária virou um almoxarifado e a sala principal de tortura um depósito de material. Essas áreas estão isoladas do resto do prédio por uma parede de drywall. O espaço aberto no teto do pátio, uma espécie de clarabóia, foi reformado e tem, hoje, uma cobertura de acrílico.
A liminar da Justiça, na ação civil pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo, ainda que parcial, é uma vitória importante e um primeiro passo para que o sonho de que esses prédios se transformem num Memorial vire realidade.
Para que não se esqueça! Para que nunca mais aconteça!