Arquiteta analisa transformação da paisagem e expulsão da população local provocadas pela fundação e expansão de Belo Horizonte
A fundação da capital mineira, no fim do século 19, a inauguração da Pampulha, em 1943, e a recente expansão do município de Nova Lima – episódios motivados por questões distintas e separados no tempo e no espaço – têm em comum padrões que traduzem a história da urbanização na região. “Ao colocar em perspectiva esses três casos, é possível identificar elementos que se repetem, como a profunda transformação da paisagem e a segregação sócio-espacial”, comenta a arquiteta Patrícia Capanema Álvares Fernandes, autora da tese Belo Horizonte: a spatial narrative in three episodes, defendida este ano no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG.Segundo a especialista, a urbanização nesses três momentos foi impulsionada por grandes projetos infraestruturais, mas também “manufaturada no cotidiano por uma sobreposição de leis e pela ação do capital privado”, destaca Patrícia Fernandes. O trabalho buscou investigar as lógicas operativas e os processos que moldaram a cidade, transcendendo os dados oficiais como fontes históricas. A fim de analisar criticamente as narrativas consolidadas, a pesquisadora recorreu a materiais de arquivo como mapas, fotografias, jornais, revistas e relatórios de administração, visitou os locais e entrevistou moradores antigos.
Cidade planejada
Concebida para substituir Ouro Preto como a capital da província de Minas Gerais, Belo Horizonte é um caso emblemático de urbanização no Brasil. Sua fundação, centralizada pelo Estado, forjou novos modos de vida em um novo território e transformou a paisagem com a canalização de cursos d’água, obras complexas de terraplenagem e expulsão da população local.
A pesquisadora explica que movimentos análogos ocorreram pelo menos outras duas vezes ao longo da história da cidade, quando seu território foi expandido com a formação de novas manchas urbanas distantes do tecido existente.
“O preço da terra determinou quem poderia habitar os locais. Na fundação da capital, antes da subdivisão de terrenos e venda de lotes, havia leis que regulavam as dimensões das casas a serem construídas, os materiais usados e os prazos mínimos para as obras. Na Pampulha, a legislação exigia, para as construções, um estilo arquitetônico diferente do que prevalecia no restante da cidade”, exemplifica Patrícia Fernandes. Segundo ela, a expansão urbana em Nova Lima foi um movimento menos ousado, mas também significativo. “Corroborada pelo Estado, sua ocupação é ditada por uma forte ideologia de mercado, que também determina preços diferenciados”, afirma.
Novas luzes
Segundo a autora, a investigação descortinou as circunstâncias que vigoravam antes mesmo do plano do engenheiro Aarão Reis, que chefiou a construção da nova cidade. “Uma análise dos discursos, discussões e leis relativas à transferência da capital revelou que muitos dos preceitos urbanísticos atribuídos a Aarão Reis, como a importância da linha reta, da ordem e da higiene, já faziam parte de um modo coletivo de pensar as cidades”, informa.
De acordo com Patrícia Fernandes, o trabalho contribui para a construção de uma teoria urbana que deriva de realidades de base em vez de modelos referenciais, de forma a acrescentar novas luzes à extensa bibliografia já existente sobre a história da urbanização em Belo Horizonte.
“A elaboração de cartografias interpretativas, que caracterizou a metodologia da pesquisa, descortinou lógicas e conexões espaciais ausentes das fontes tradicionais. A conversa informal com moradores também possibilitou captar alguns dos sentimentos das pessoas e sua avaliação dos efeitos das transformações espaciais”, revela.
Para a arquiteta, a história oficial, retratada com inspiração no positivismo e nos modelos urbanos europeus, é repleta de incompletudes e falhas. “Normalmente a história é contada pelos vitoriosos, enquanto as vozes da periferia são sombreadas. Muita importância é dada aos planos, enquanto a cidade cresce sob nossos olhos, mediante uma acumulação de processos e práticas”, argumenta.
Patrícia Fernandes defende que é fundamental identificar os muitos atores envolvidos na urbanização, “que configuram um longo espectro entre o Estado e a autoconstrução das favelas”. “A pesquisa avança para entender essa trajetória com todas as suas camadas e complexidades, assim, revela processos ofuscados que – mais do que os projetos oficiais – moldaram a cidade”, explica a autora.
Fonte: Cedecom UFMG