Cangaço não foi reação dos mais pobres contra o mando dos ricos sustenta antropólogo em estudo

Cangaço não foi reação dos mais pobres contra o mando dos ricos sustenta antropólogo em estudo
Antonio Silvino e seu bando. Ele é o segundo a esquerda, em pé. Silvino, cujo nome verdadeiro era Manoel Baptista de Moraes (1872-1944), foi, muito antes de Lampião, o mais famoso chefe do cangaço (foto: Wikimedia Commons)

As ideias de “coronelismo”, de “mando exclusivista”, de “curral eleitoral”, de “voto de cabresto” tornaram-se quase um lugar-comum na literatura sociológica e moldaram a visão dominante sobre o sertão nordestino – da Primeira República aos tempos atuais. Essas ideias receberam uma refutação consistente por parte do antropólogo Jorge Mattar Villela, professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Fruto de duas décadas de pesquisa nas regiões do Pajeú e do Navio, no sertão de Pernambuco, o material acumulado por Villela resultou em três livros e vários artigos sobre política eleitoral, administração pública da violência e culto dos mortos, em um intervalo cronológico de 120 anos. Tudo isso foi, de certo modo, condensado no artigo A Antropologia do Sertão de Pernambuco. Pajeú e Navio, publicado recentemente na Revista de Antropologia da UFSCar e que pode ser acessado aqui.

Villela contesta a noção de “coronelismo”, que considera uma explicação simplista do poder local durante a Primeira República. E apresenta um panorama muito mais complexo, com um sistema de poder descentralizado e baseado em alianças familiares e vinganças de sangue. Essas vinganças teriam criado um ambiente em que os conflitos eram gestados e geridos de um modo capaz de formar e desfazer laços familiares em simultâneo à atualização de laços políticos. Em vez de um controle centralizado por coronéis, havia uma rede de alianças que moldavam o comportamento político e social.

Nessa região, onde nasceu Virgulino Ferreira, o Lampião, o pesquisador identificou um ambiente em que o porte e o uso das armas não eram inusitados, em que vivia um “povo em armas” (conceito criado para refutar o da figura do coronel), em que as vinganças de sangue abundavam. “Dispondo de altos níveis de autonomia nos conflitos, como se poderia viver sob esse regime de submissão sem que houvesse uma circunstância de revolta?”, questiona.

Com base na vasta documentação estudada, Villela informa que, nas grandes brigas de famílias, havia gente capaz de arregimentar, ou atrair, vários microgrupos de base familiar formando bandos instáveis de mais de cem homens armados, voltados para o ataque a um inimigo. “Homens de fama eram capazes de fazer aderir às questões de sua família outros microgrupos arregimentados por outros homens de fama”, escreve.

O pesquisador ressalva que o mando exclusivista já havia sido objeto de uma crítica feita por intelectuais importantes, como Maria Isaura Pereira de Queiroz e Moacir Palmeira, mas afirma que essa crítica não chegou ao fundo da questão, porque se manteve presa ao viés de pensar a política a partir do Estado. O Estado funcionaria como um farol ofuscante, que impediria o estudioso de perceber tramas mais sutis.

Outra ideia recorrente que sua pesquisa contesta é a do cangaço como reação da população mais pobre contra o mandonismo dos ricos ou do poder estatal. “Todos os grandes capitães de cangaço, salvo Virgulino Ferreira, o Lampião, eram de grandes e antigas famílias do sertão de Pernambuco, do Ceará e da Paraíba. Famílias prestigiadas, de poder, altas patentes na Guarda Nacional e honrarias desde o período monárquico”, diz Vilella.

Essa intrincada teia de relações familiares, que estruturou o cangaço, teria se perpetuado na vida social e na política eleitoral, sendo ela, e não o Estado, o elemento definidor. Mas Vilella ressalva que a política é tão constituída pelos laços de sangue quanto os laços de sangue são constituídos pela política. Ainda que não sejam parentes biológicos, os apoiadores políticos fiéis costumavam ser incorporados à família estendida. E a feitura do parentesco se dá em aliança com a política de um jeito tão segmentar quanto o das vinganças, porque há também nas eleições microgrupos de base familiar capazes de arregimentar votos, num crescente semelhante ao que redundava nos grandes bandos de cangaço.

A “casa” está no cerne da noção de microgrupos de base familiar. “As ‘casas’ no sertão se ligam entre elas e constituem formações mais amplas, atadas por um personagem ancestral chamado ‘tronco’ e cuja localização nas genealogias é determinável (mas não necessariamente determinada) por meio da sua biografia”, conta o pesquisador.

Nesse contexto, o culto aos mortos, com seus retratos pendurados nas paredes das casas, tornou-se um ingrediente fundamental da política partidária e eleitoral. A memória dos ancestrais foi mantida viva por meio de rituais e celebrações, que serviram para reforçar a coesão familiar e comunitária. A celebração de missas em sua homenagem e a publicação de genealogias ilustram como os mortos são mobilizados para legitimar as posições sociais e políticas das famílias. “Nos túmulos dos cemitérios, os mortos fazem política ao fazerem genealogia”, afirma Vilella.

Na análise da democracia atual, o pesquisador observa que a política eleitoral do sertão de Pernambuco, e de todo o sertão nordestino por extensão, se mantém no contexto contemporâneo. “O que eu quero dizer é que, de uma certa forma, essas coisas acontecem em qualquer lugar. Podem acontecer, por exemplo, na avenida Faria Lima, em São Paulo. Um escritório lobista da Faria Lima também é power-user da democracia e da economia. Não é uma coisa de gente pobre periférica, é de gente que está colada à obtenção de recursos gerados no Estado nacional. A segmentaridade do voto, as complexas negociações intergrupais, as alianças familiares e locais continuam presentes, e dão o tom ao processo”, enfatiza Vilella.

No sertão nordestino, as visitas eleitorais, nas quais os candidatos visitam pessoalmente os eleitores em suas residências, reforçam a importância das relações interpessoais na política. Como relata o pesquisador, essas visitas sempre se fazem em grupo, e o tamanho do grupo depende do prestígio do candidato ou candidata e do cargo que se pretende alcançar. As visitas não são realizadas da porta para fora. O grupo entra, senta-se, come, bebe, conversa, ouve e fala. As negociações propriamente políticas são feitas em particular, fora das casas quando elas não têm um cômodo apropriado. Todo mundo sabe do que se trata, mas a etiqueta impede que a “política” macule a recepção.

O estudo de Villela oferece uma visão rica e detalhada das dinâmicas sociais e políticas no sertão nordestino, desafiando interpretações simplistas e iluminando a complexidade das relações de poder e memória na região. Recebeu apoio da FAPESP por meio do Projeto Temático “Artes e semânticas da criação e da memória”.

(*) Artigo de autoria de José Tadeu Arantes/Agência FAPESP.
 

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