Documentário aponta a lógica da grilagem, da mineração e do agronegócio em terras indígenas

Documentário aponta a lógica da grilagem, da mineração e do agronegócio em terras indígenas
Floresta Nacional de Carajás - Amazônia Oriental - Foto Crédito Agência Brasil.

“Os invasores dizem que querem a terra. Mas, no meu ponto de vista, eles querem mais do que a terra. Eles querem acabar com o povo indígena, com os [indígenas] isolados. E a gente não vai permitir que aconteça isso, não.” A fala é de Bitaté, liderança indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no documentário O Território, que denuncia as constantes invasões à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia.

Rodeado por cidades e áreas de desmatamento, o território de quase 2 mil hectares de floresta preservada é habitado por nove povos, incluindo quatro isolados (sem contato algum com a sociedade). O filme testemunha os avanços sobre terras indígenas já homologadas e também a defesa dos povos originais contra ameaças como desmatamento, queimadas, fronteira agrícola, garimpo e ações de grileiros. Dirigido por Alex Pritz e coproduzido por indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, o documentário venceu as categorias “Prêmio do Público” e “Prêmio Especial do Júri para Arte Documental” no Festival Sundance de Cinema 2022. 

“Falar de Amazônia, mineração e povos indígenas é bastante difícil, pois remete às perseguições, às ameaças de morte e ao assassinato de ativistas. A invasão à terra indígena traz madeireiro, garimpeiro, caçador, pescador e também drogas, prostituição e muito desmatamento. Para se defender das invasões e de todos esses problemas, os indígenas foram aprender como comunicar e documentar as ações por audiovisual, além de formar o grupo de guardiões, que protegem a floresta ”, disse Ivaneide Bandeira Cardozo, historiadora, indigenista e uma das protagonistas do filme O Território.

Cardozo participou do terceiro evento da série “Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional”, organizado pela FAPESP.

A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto “Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira“, coordenado pelo professor da Universidade Estadual de Campinas Emilio Moran e apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).

O documentário O Território conta esse conflito entre indígenas e invasores a partir dos dois pontos de vista. A parte indígena, de defesa da floresta, foi documentada pelos próprios Uru-Eu-Wau-Wau, que há alguns anos vêm estudando audiovisual e comunicação como parte da estratégia para proteger a terra indígena. Já a parte dos invasores foi gravada pela equipe não indígena do diretor Alex Pritz.

“O filme traz imagens dos ataques de invasores pelo olhar do povo indígena e também do invasor. Acho importante ouvir o invasor para entender como ele pensa e quais são as suas motivações”, afirma.

A indigenista conta que já há alguns anos os indígenas têm enviado as imagens das invasões para a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público, com o objetivo de ajuizar as ações. “Infelizmente, nos últimos seis anos, essas invasões têm crescido muito. Os Cadastros Ambientais Rurais [CAR] têm sido usados para promover essas invasões. A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau tem 1.400 Cadastros Ambientais Rurais ilegais, que servem justamente para promover as invasões”, denuncia.

No ano passado, durante o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal de terras indígenas (que segue suspenso e o julgamento foi retirado da pauta), um levantamento do Ministério Público, divulgado pela CNN Brasil, constatou a existência de 9.986 propriedades rurais inscritas no CAR em áreas sobrepostas a terras indígenas.

No julgamento, o STF decidiria se os povos indígenas têm direito ao usufruto apenas das áreas que afirmam ter pertencido a seus antepassados e que já ocupavam quando a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, ou se tal direito se estende também a terras ocupadas após essa data. De acordo com o Instituto Socioambiental, o território foi declarado posse permanente dos indígenas em 1985 – medida revogada em 1990 pelo presidente José Sarney. A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau foi novamente homologada por decreto do então presidente Collor em 1991.

De acordo com Cardozo, o documentário é uma forma de os indígenas mostrarem ao mundo o tipo de violência e conflito vivenciado em seu território. “Ele se aprofunda na grilagem de terra, que está muito ligada a diversos incentivadores e vetores da invasão, que são os políticos que fomentam a flexibilização de leis e colocam as terras indígenas e as unidades de conservação como moeda de troca para o voto. Além dos políticos no legislativo e no executivo, temos ainda grandes empresários que dão as condições financeiras e de estrutura para os pequenos invadirem a terra”, disse.

Embora as invasões sejam documentadas e divulgadas pelos Uru-Eu-Wau-Wau, o conflito ganhou maior visibilidade a partir do documentário premiado. “O filme foi visto em todo o mundo e passou a pressionar o governo, inclusive para prender o responsável pela morte do Ari Uru-Eu-Wau-Wau ocorrida durante as filmagens. Ele foi assassinado justamente por ser um guardião da floresta”, disse.

Como garimpo e mineração pensam

Em outra apresentação do seminário, Bruno Milanez, professor no Programa de Pós-Graduação em Geografia e no Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora, afirmou que a pressão vivida nas terras indígenas e nas unidades de conservação é um problema complexo e que precisa ser mais bem compreendido pela sociedade como um todo.

“A mineração, a mineração ilegal e o garimpo, por exemplo, são formados por grupos distintos que estão cada vez com mais poder político. Para contrapor essas forças é importante que a sociedade perceba como tudo isso está associado. O audiovisual pode comunicar a complexidade desse problema e mostrar para a sociedade que não existe uma solução fácil. Existem soluções muito difíceis. É fundamental que a sociedade tome conhecimento dessa destruição ambiental, social e cultural que a mineração e o garimpo estão fazendo”, disse.

“A mineração ilegal no Brasil hoje está extrapolando a questão puramente dos garimpeiros em si e há cada vez mais relação com o narcotráfico, com tráfico de armas, com as milícias da região Sudeste. A gente vê o crime organizado encontrando na mineração uma forma alternativa de atividade e uma forma muito fácil de lavagem de dinheiro”, completou.

O pesquisador explicou que o desmatamento causado pela mineração e o garimpo tem uma lógica diferente do provocado pela agropecuária. “Geralmente o desmatamento causado pela agropecuária está no que chamamos de arco do desmatamento, área ao sul e sudeste da Amazônia, que vai avançando gradativamente. Como o garimpo e a mineração vão atrás das reservas indígenas, eles tendem a causar o desmatamento em áreas extremamente preservadas. Graças às facilidades de transporte associadas a pistas de pouso clandestinas, eles abrem clareiras em áreas que eram intocadas ou onde existiam comunidades indígenas isoladas. A mineração tem essa capacidade de chegar a áreas isoladas ”, disse.

E é justamente ao redor das terras indígenas da Amazônia, em áreas de garimpo e garimpo ilegal, onde existem grandes e médias empresas atuando.

“A mídia vem tratando o garimpo como a única forma de extração. Mas é preciso destacar que existem dois eixos: o garimpeiro de bateia, como chamamos, e o eixo mais empresarial, que tem ordenamento próprio, maior escala e capacidade para comprar retroescavadeiras de R$ 500 mil a R$ 1 milhão”, contou.

“Se você entra no garimpo dos [povo] Cinta-larga, você vê grandes maquinários. Embora eles digam que são dos indígenas, isso não é verdade, pois são máquinas que custam mais de R$ 1 milhão cada. E o povo cinta-larga passa fome. Eu sei disso, pois a associação que eu trabalho doa cestas básicas para eles”, disse Cardozo, que é coordenadora-geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, em Porto Velho.

Para Milanez, o ouro é um dos minérios mais contraditórios do ponto de vista social e ambiental. “Minas economicamente viáveis, de extração em larga escala, tendem a ter algo em torno de 0,5% a 1,3% de ouro dentro de uma reserva. Isso é uma quantidade mínima. Para se fazer um brinco pequeno, daqueles com uma pérola, é preciso movimentar um caminhão de terra. Um caminhão que só a roda tem três metros de altura”, disse.

Segundo o professor, dados de 2010 mostravam que cerca de 50% do ouro extraído vai para a indústria de joias, que não é essencial ou prioritária. “Cerca de 40% vai para investimento e especulação, ou seja, o ouro como ativo financeiro, e 10% vai para a indústria da tecnologia, que talvez tenha um uso mais importante na nossa sociedade. Para que extrair? Qual a racionalidade disso?”, indagou.

Embora no que se refere à questão socioambiental a mineração de ouro não faça sentido algum, o professor lembra que o metal segue extremamente valorizado. “A extração de ouro segue sendo valorizada no mundo todo pelo seu grande valor e usos múltiplos. Os bancos centrais atuam como regulador desse ouro e o usam como reserva de valor. Existe uma imagem que mostra o quão irracional é esse sistema. Cerca de 90% do ouro brasileiro é exportado, indo sobretudo para a Suíça. Então, esse ouro é retirado do subsolo brasileiro, com todos os problemas ligados a essa atividade, é colocado em um helicóptero, depois em um avião e enviado para o subsolo na Suíça ou na Inglaterra. O ouro continua no subsolo, ele apenas foi transferido, gerando um passivo muito grande”, lamenta.

A série de webinário “Amazônia em imagem e movimento: as histórias do extrativismo da Amazônia registradas pelas lentes do documentário nacional” é composta por três encontros.

A primeira mesa abordou as transformações da atividade extrativista na Amazônia e como tais transformações vêm sendo registradas pelo documentário nacional. A íntegra do evento está disponível em: www.youtube.com/watch?v=TbaACBwT3VM&ab_channel=Ag%C3%AAnciaFAPESP.

O segundo webinário debateu a relevância da divulgação, por meio de filmes, de outras versões da história na legitimação de narrativas sobre os impactos dos megaempreendimentos hidrelétricos concretizados na Amazônia brasileira nas duas primeiras décadas do século 21. Para assistir acesse: www.youtube.com/watch?v=6988Ep67U48.

E a terceira mesa, que encerra o ciclo, trata das produções mais recentes sobre as consequências do extrativismo, em especial a mineração, realizadas por cineastas e coletivos audiovisuais provenientes dos próprios territórios afetados. Acompanhe a discussão em: www.youtube.com/watch?v=MwdJPXKoyUA&ab_channel=Ag%C3%AAnciaFAPESP.
 

Com informações da Agência FAPESP . Autor: Maria Fernanda Ziegler. Leia o original aqui.

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