Mudanças no clima e a necessidade de se preservar os manguezais e suas “esculturas de lama”
Leonardo Sanches Previti(*)
“Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excrementos e outros resíduos que a maré traz. Quando ainda não é caranguejo, vai ser.”
(“Homens e Caranguejos”, Josué de Castro)
No final de 2017, a Organização das Nações Unidas declarou o período entre 2021 e 2030 a “Década do Oceano”, uma iniciativa para mobilizar governos e a sociedade civil a protegerem os oceanos, zonas costeiras e recursos marinhos. Ainda que cubram a maior parte da superfície terrestre, os oceanos e ecossistemas marinhos são pouco protegidos por Unidades de Conservação e são extremamente vulneráveis à superexploração e efeitos das mudanças climáticas.
Na zona costeira brasileira jaz um dos ecossistemas mais ricos e negligenciados das zonas tropicais: os manguezais. Esses ecossistemas, localizados na interface entre o ambiente continental e marinho, influenciados tanto pelo regime fluvial quanto pelas marés, têm uma importância ecológica enorme por servirem de berçário para diversas espécies, marinhas e terrestres, que utilizam a região de estuário para desova.
Além disso, as florestas de manguezais são ambientes extremamente produtivos, capazes de armazenar grandes quantidades de carbono no solo. De acordo com pesquisas recentes, os manguezais brasileiros são capazes de armazenar até 4,3 vezes mais carbono nos primeiros 100 centímetros do solo do que outros biomas vegetados do país, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Essa alta eficiência indica que a restauração de áreas de manguezais degradadas é essencial para o sequestro de carbono, assim como a preservação das áreas atualmente existentes evitaria a emissão de grandes quantidades de gases de efeito estufa.
Outra vantagem na preservação dos manguezais está relacionada à complexa estrutura das raízes dessa vegetação, agora do ponto de vista da Engenharia Costeira. O sedimento transportado pelos rios que deságuam nos estuários é parcialmente retido pela intrincada rede de raízes dos manguezais, reduzindo o efeito de assoreamento que poderia impedir a navegação em regiões portuárias. É imprescindível, portanto, que futuros projetos de estruturas costeiras sejam pensados de forma sistêmica e utilizem, sempre que possível, Soluções Baseadas na Natureza, dada a redução de custos e de impactos ambientais no entorno, garantindo a preservação da vegetação circundante.
Por fim, outro aspecto que merece ser citado na preservação desses ecossistemas é sua importância social. Hoje, uma população considerável de extrativistas artesanais dependem da extração de recursos obtidos nas florestas de manguezal, como caranguejos e mariscos. No Nordeste brasileiro, a maior parte desses trabalhadores são mulheres que, com o derramamento de óleo ocorrido em 2019, tiveram seu estilo de vida afetado, perdendo sua fonte de renda. Este ponto acrescenta um componente de gênero, muitas vezes ignorado. Os manguezais também são importantes como fonte de inspiração para artistas e movimentos culturais que tocam em sentimentos muitas vezes intangíveis por visões estritamente técnicas e políticas. Na década de 90, por exemplo, Recife passou por uma transformação cultural que pode ser creditada ao movimento musical e estético Manguebeat, capitaneado por figuras como Chico Science e Fred 04, inspirados pela dimensão escatológica do mangue.
No Brasil, a maior parte dos manguezais encontra-se bem preservada. De acordo com levantamento feito pelo instituto MapBiomas, cerca de 84% das áreas de mangue mantiveram-se estáveis entre os anos de 2000 e 2020. Além disso, a porção vegetada do ecossistema conta com um status de Área de Preservação Permanente garantido pelo Código Florestal, ainda que as mudanças feitas em 2012 tenham liberado algumas restrições à sua ocupação e tornado sua porção mais salina, denominada apicum, vulnerável a atividades como a criação de camarão e extração de sal. A elevação do nível do mar, que já vem sendo observada no litoral brasileiro, também terá impactos diretos sobre estes ecossistemas.
Dadas as dimensões sob as quais os manguezais têm influência direta (biológica, infraestrutural e social, dentre outras) a perda desses ecossistemas trará prejuízos custosos e, sob alguns aspectos, irremediáveis. É necessário, portanto, que a sociedade brasileira enxergue a riqueza guardada pelos manguezais, sob os mais diversos pontos de vista, e se una na luta pela preservação de suas impressionantes esculturas de lama.
Bacharel em Engenharia Civil (2018) pelo Centro Universitário do Instituto Mauá de Tecnologia (CEUN-IMT). Entre fevereiro e dezembro de 2017 conduziu uma iniciação científica no Laboratório de Mecânica dos Solos do CEUN-IMT a fim de avaliar o comportamento hidráulico e mecânico da bentonita utilizada em geossintéticos para impermeabilização de aterros de resíduos. Desde 2020 é aluno de mestrado de geotecnia ambiental no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGECiv) da UFSCar cuja pesquisa visa avaliar os efeitos sinérgicos da fluência em geomembranas de polietileno e PVC expostas às intempéries. Possui experiência profissional em Gerenciamento e Remediação de Áreas Contaminadas. Associado efetivo pleno da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) desde 2021.